Crise de confiança, renovação da política brasileira?

Paço municipal de São Carlos - sede do poder executivo
Humberto Laudares

O mundo está sofrendo de mal-estar. E a falta de confiança na política é uma das causas disso. Na medida em que as pessoas não se sentem representadas, cresce a manifestação individual ou de grupos que externam suas opiniões e visões de mundo – das mais interessantes às mais repugnantes – no palco digital hoje à disposição de todos. Há no ar uma sensação de que estamos em um processo de mudanças, sendo, entretanto, impossível prever sua direção ou tamanho.

O universo político ainda não se acomodou a essa nova realidade, embora seja constantemente desafiado por ela. A classe política parece encastelada diante desse mundo mais conectado, mais inquieto e mais exigente. Um mundo em que cresce a percepção da desigualdade econômica e do distanciamento dos políticos. É como se os governos e parlamentos estivessem a serviço de meia dúzia de endinheirados ou de ratazanas da política.

O terreno para populismos é fértil, haja vista o fenômeno de Donald Trump, a escalada da extrema direita europeia e o crescimento de nomes como Jair Bolsonaro no Brasil. O pior é observar a aparente falta de capacidade (ou ao menos humildade) por parte do establishment político em compreender que ele está na raiz desse problema e que precisa se reformar para dar respostas rápidas a essa sociedade insatisfeita. Essa “desconexão” tem seu preço.

Parte do que acontece no mundo, acontece no Brasil, embora haja particularidades locais. A política brasileira está no fundo do poço. A atual crise tornou a política pop, mas também alvo de repugnância coletiva. O cenário não é rotineiro, os problemas não são apenas conjunturais. Embora a base da política brasileira esteja apodrecida, a única via para consertá-la, democraticamente, é a própria política. Para isso, não há atalhos.

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As causas que apontam uma quebra de confiança na política brasileira são variadas e correlacionam-se entre si. Vamos por partes.

Conflito geracional

A geração da Constituinte de 1988 detém o poder político desde a promulgação da Carta. Entre 1990 e 2016, o Brasil avançou muito, enriqueceu, internacionalizou-se e reduziu a pobreza e as desigualdades. Esta geração consertou erros provocados pela ditadura militar, instituiu a democracia no Brasil e fortaleceu as instituições republicanas.

Passados quase 30 anos, esta mesma geração, ainda analógica, mostra-se incapaz de compreender o mundo digital. Pior ainda, mostrou-se incapaz de formar sucessores políticos conectados com a sociedade. Nesse sentindo, as juventudes partidárias tornaram-se uma chocadeira de papagaios de pirata. Embora haja algumas (poucas) exceções, as juventudes partidárias foram treinadas para defender até as falhas do atual sistema político e seus caciques. Defender projetos de poder e não projetos para o país, para as pessoas.  Não é surpresa constatar que o personalismo ainda tem lugar cativo na cultura política brasileira.

Junho de 2013 foi um marco na história recente do país. Jovens, insatisfeitos com a representação política e com a qualidade dos serviços públicos, organizaram manifestações, empunhados de seus telefones celulares, para que suas vozes insatisfeitas fossem ouvidas. Em 2014, um grupo de pessoas não alinhado a partido algum se reuniu para organizar manifestações em todo o país em apoio ao candidato Aécio Neves. O próprio partido do então candidato, o PSDB, olhou tudo aquilo bestializado. “Como vocês organizaram isso tudo sem pagar ninguém?”, indagou um dirigente partidário municipal em São Paulo. Embora o PT tivesse atacado tais movimentações impiedosamente, o ex-presidente Lula disse em discurso na época “que era preciso entender o que estava acontecendo”, pois havia algo de “novo”. 

A partir de 2015 vários outros movimentos - de diferentes orientações ideológicas – se formaram. Muitos passaram a apoiar como pauta única o impeachment da presidente Dilma Rousseff. Outros se fortaleceram para defender a permanência da presidente. Outros insistiram na convergência de ideias ou mesmo na defesa de mais e melhor participação dentro dos partidos políticos.

O que todos esses movimentos mostram é que a juventude está farta com o establishment político, mas está disposta a se organizar para mudá-lo.

Enquanto 59% dos eleitores têm entre 16 e 44 anos, a política ainda é comandada pela geração sexagenária. Para boa parte dos partidos, deputado novo significa ser filho de algum cacique antigo. Mais precisamente, segundo a ONG Transparência Brasil 49% dos deputados federais eleitos em 2014 pertence a dinastias políticas. O novo com cabeça e práticas velhas não conta.

O conflito geracional é causa da descrença na política, mas também é parte da solução.

Um choque chamado Lava Jato

A geração da Constituinte montou o atual sistema político e a forma de financiá-lo. Na recente democracia brasileira, as elites política e econômica criaram um acordo tácito de que “caixa dois” nas eleições era algo moralmente aceitável, embora não fosse legal. Portanto, foi criada uma nova classificação de “honestidade” no ambiente político. O político “honesto” operava por meio de caixa dois – para financiar a campanha eleitoral ou pagar “líderes comunitários” -, mas não se enriquecia com esse dinheiro. Já o corrupto fazia de tudo. O “caixa dois” foi praticamente institucionalizado no Brasil.

Naturalmente, surgem as indagações: quem garante para onde o dinheiro do “caixa dois” vai realmente? Quem pode dizer quem rouba mais ou menos? Se “caixa dois” é ilegal, como pode ser justificável?

A operação Lava Jato, liderada por uma geração nova de juízes e procuradores, escancarou a todo mundo os meandros mais podres do financiamento político brasileiro e da relação incestuosa entre mercado e Estado. A corrupção que era apenas pressentida, agora estava ali escancarada, revelada em seus métodos e personagens. Se alguém tinha alguma dúvida de que o sistema político atual estava falido, passou a ter certeza.

Como confiar nessa política?

Decrepitude dos partidos políticos

Os partidos políticos brasileiros têm grandes diferenças, mas há muitas semelhanças. A primeira delas é que ainda são controlados por seus fundadores após 30 anos de existência, não têm mecanismos de governança inclusivos e eficientes, não desenvolveram novas lideranças e estão perdidos diante da atual crise política. Além disso, não gozam de nenhuma confiança da sociedade. 77% das pessoas não confiam em partido nenhum, segundo o instituto Ipsos (2016). Já o Datafolha (2015) mostra que 75% das pessoas não têm partido de preferência e 91% não confiam em partidos políticos.

Enquanto muitos políticos levantam a bandeira da reforma política como solução única para melhorar a política, nenhum deles defendeu uma reforma partidária.  Os partidos detêm uma espécie de monopólio da representação, já que o único caminho para candidatar-se a um cargo eletivo é através de uma legenda. Além disso, recebem recursos públicos para prestar tais serviços (R$ 737,9 milhões em 2016), mas não dão transparência à sociedade sobre como tais recursos são gastos.

Como confiar na política sem confiar nos partidos?

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A desconexão de Brasília com o Brasil é um sinal de orfandade política da sociedade brasileira. Uma das consequências da falta de confiança na classe política é a recente ascensão do radicalismo.

Radicalismo...

O brasileiro, em geral, não era muito ligado à política. Segundo variadas pesquisas de opinião, isso tem mudado desde 2013. Mas, mesmo assim, a profundidade dos debates políticos travados nas redes sociais ou mesmo nas ruas deixa a desejar. É como se a desinformação encontrasse com a insatisfação, resultando em um grau de radicalismo amedrontador, agravado pela falta de esperança da melhora da economia no curto prazo e por vícios da própria cultura política.

Se por um lado, o discurso típico do PT de “nós contra eles”, radicalizado na campanha presidencial de 2014, foi usado por movimentos políticos como argumento justificador para se fazer oposição a qualquer custo. Por outro, as redes sociais confirmam vieses cognitivos e fomentam ainda mais a radicalização.

O maior símbolo da radicalização burra vista na política brasileira foi o muro instaurado na Esplanada dos Ministérios para a votação do impeachment da presidente Dilma na Câmara dos Deputados. Dentro da Câmara, o comportamento dos parlamentares não diferia muito dos militantes expostos ao sol e aos gritos de guerra. 

O radicalismo sempre teve uma serventia histórica no Brasil para perpetuar o “status quo”. É um reflexo de nossa cultura política autoritária, sendo também cultivado e instrumentalizado pelas instituições políticas, a exemplo dos partidos políticos. Não há nada mais conveniente do que aglutinar pessoas em grupos de “nós contra eles”, apelando para a emoção, em vez de debater problemas e tentar encontrar soluções. Não há frase melhor para exemplificar esse discurso do que a do general Médici: “Brasil, ame ou deixe-o”. Afinal, se todos estivessem preocupados em resolver um problema único, o radicalismo seria dissolvido. As diferenças aparadas, a construção seria conjunta, a despeito de naturais divergências ideológicas ou interesses distintos.

Um exemplo interessante desta dinâmica é o Conselho Federal Suíço. A Suíça não tem um presidente ou primeiro-ministro, tem sete. Desde 1848, sete membros de diferentes partidos, segundo sua força eleitoral, revezam na presidência do país no período de um ano. De forma geral, a composição do Conselho Federal acaba sendo formada por dois radicais, dois democratas cristãos, dois socialistas e um democrata de centro. Cada um dos ministros dirige um “ministério”. O governo funciona como órgão coletivo, sendo que as decisões tomadas valem como decisões do colegiado – e não de um partido X ou Y. Os comunicados oficiais expressam a opinião do Conselho, ressaltando que “o governo decidiu...”. Mesmo que a decisão governamental vá de encontro a agendas partidárias, uma vez votada, a decisão deve ser respaldada pelos sete ministros.

Não estou sugerindo que o Brasil tenha sete presidentes. Mas imagine se os partidos políticos se concentrassem em encontrar soluções para a educação e a saúde no país? Imagine se os partidos políticos funcionassem como organizações focadas em resolver o problema das pessoas e promover efetivamente o desenvolvimento?

... Seguido da pasmaceira desconcertante

Não creio que o que sucederá a tempestade será a calmaria. Toda agitação durante e após as eleições de 2014 parecem ter arrefecido no momento em que o processo de impeachment da presidente Dilma foi acatado pelo Senado Federal. As pessoas parecem estar cansadas de falar no assunto.

Essa sensação de pasmaceira deve ser temporária. O futuro político do governo interino deverá se encerrar em 2018. O governo Temer já penhorou o prometido ajuste fiscal, dando um passa-moleque no famigerado mercado financeiro. Jogou a culpa na suposta pressão do Congresso. Ministros como o da Saúde, Ricardo Barros, e o da Justiça, Alexandre de Moraes, já deram seguidas declarações de que têm pacto com o atraso. Acreditar que o governo Temer terá algum compromisso com a ética ou com o futuro é acreditar em conto de fadas. Isso não significa que não possa haver progressos em áreas específicas, devido ao desempenho de um ou outro ministro. Nada é absolutamente ruim – nem mesmo o governo Dilma foi.

O Brasil vive um clima de distopia, que, em última análise, favorece a mesmice, a mediocridade reinante na política brasileira.  O PMDB no poder simboliza de forma emblemática esse sentimento.

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Para aqueles que militam por uma política mais limpa, inclusiva e representativa, como eu, é conveniente achar que estamos vivendo um ponto de inflexão. É claro que é um “wishful thinking” (consciente). Nós só viveremos um ponto de inflexão se formos competentes para construir coletivamente um projeto de futuro capaz de levar a política brasileira a um novo patamar.  Uma política pautada por princípios e comprometida com a resolução dos grandes problemas do país – e não com a política paroquial que tenta agradar a qualquer custo currais eleitorais ou categorias de classe. No atual estágio, não há futuro melhor para o país sem renovar a política com ideias e pessoas. Sem corrigir os problemas atuais e fazer da transparência uma ferramenta de prática política, a fim de resgatar a confiança entre cidadãos e representantes.

Ao mesmo tempo, não podemos menosprezar a enorme força da inércia e do atraso. Com base nas mudanças eleitorais aprovadas pelo Congresso, as próximas eleições irão privilegiar candidatos com mandatos, com fama, com facilidade de fazerem caixa dois ou que tenham muito dinheiro.

A proibição de doação de empresas para campanhas políticas, aliada a um maior risco de punição de “caixa dois”, devido à Lava Jato e à improbabilidade do cidadão brasileiro comum em doar dinheiro para eleições, poderá prejudicar ainda mais a renovação qualitativa de quadros eleitos. Em uma eleição o que importa não é quanto um candidato gasta, mas quanto o seu concorrente gasta. Portanto, candidatos ligados a igrejas e ao crime - ambientes mais propícios à arrecadação de recursos e à arregimentação de eleitores - terão vantagem competitiva. O mesmo tende a ocorrer com candidatos que já ocupam algum cargo eletivo ou contem com o apoio de algum governante. Outra opção seria lançar artistas de TV como candidatos, pois, embora não conheçam política ou políticas públicas, já são conhecidos pelo público.

Nem sempre regras pretensamente moralizadoras atingem os objetivos anunciados. Ao se tentar restringir a influência do poder econômico, deu-se maior peso ao poder político, promovendo desequilíbrio e dificultando ainda mais a desejável e necessária renovação. Parece que este poderá ser o caso das eleições municipais de 2016.

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Diante desse cenário desalentador, como podemos fazer da crise uma oportunidade de melhorar a política? Como influenciar os partidos para se renovarem? Como construir consensos, aparar arestas e reduzir os radicalismos? Como pactuar uma agenda de futuro para o Brasil? Como renovar a política com ideias e com pessoas? Como mudar as regras que regem o financiamento eleitoral e garantir transparência à sociedade?

Não há prognósticos fáceis para questões tão complexas. Mas a bela abertura da Olimpíada nos oferece algumas dicas. A reação do público ao evento mostrou que o brasileiro sofre de uma carência coletiva. Está com a autoestima abalada. Mostrou, também, que a maioria dos brasileiros, independente de preferência político-partidária, tem a capacidade de concordar em temas essenciais para o desenvolvimento global, tais como a sustentabilidade, a diversidade e o respeito aos direitos humanos.

Se o brasileiro estava com saudades de sentir orgulho de seu país, por que não poderá se mobilizar para resolver os problemas comuns inerentes à política? É claro que não há relação clara entre a insatisfação e a ação, sobretudo quando precisa ser coletiva. Mas pode haver um germe da mudança aí.

Após algum tempo militando por uma política que viabilize um futuro mais próspero para o Brasil, que garanta igualdade de oportunidades para todos e faça o brasileiro voltar a sonhar com um futuro melhor, confesso que a única conclusão a que cheguei é que a reposta terá que vir da sociedade. Não virá dos atuais políticos. Não virá dos partidos. Não virá dos gritos de guerra, nem dos panelaços, muito menos dos tuitaços. Não virá de apenas uma fonte, de um bairro, de um gênero ou de uma classe social.

A sociedade, em sua pluralidade, precisa ocupar a política para que ela trabalhe em benefício de todos – e não de alguns. A renovação na política terá que ocorrer também nas casas legislativas e no comando dos poderes executivos. Não se muda a realidade de um país apenas com postagens de Facebook ou passeatas na rua, pois é preciso mudar leis, regras, práticas, decisões e líderes. A renovação na política brasileira é, hoje, a única forma de resgatar a confiança na política, na democracia. E seria apenas um passo necessário, mas não suficiente.

E como será isso? Não sei. Mas certamente a sua participação, a de cada um de nós, fará a diferença.

Humberto Laudares é especialista em políticas públicas. É candidato ao Ph.D. em Economia pelo Graduate Institute, Genebra, mestre em política econômica pela Universidade Columbia, graduado em Administração pela FGV-EAESP e Ciências Sociais pela USP.  É um dos fundadores do movimento socialdemocrata Onda Azul.

Fonte: Nexo Jornal

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